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“Eles levaram a mamãe” – Órfãos do expurgo na Turquia

“Eles levaram a mamãe” – Órfãos do expurgo na Turquia
outubro 18
10:07 2016

EXPURGO NA TURQUIA – O devaneio de Omar foi subitamente interrompido com um toque alto vindo de seu bolso. Quando ele pegou seu celular, Omar colocou o telefone o mais longe possível de si mesmo para ver quem estava ligando. Sem os óculos, e com o brilho do sol, o toque parou antes que Omar pudesse identificar quem estava ligando.

Três segundos depois, outra chamada. Omar atendeu o telefone desta vez.

Vovô, eles levaram embora a mamãe.

Calma, calma. O que? Quem são eles?

Abdullah, de 11 anos, chorando, mal conseguia falar. Mas agora que sua mãe estava ausente e como o mais velho da família, precisava ser forte. Ele rapidamente reuniu suas forças.

Vovô, alguns policiais vieram aqui faz pouco tempo. Eles procuraram o papai. Ele tá no trabalho. Eles levaram a mamãe.

Você ligou pro seu pai?

Liguei, mas ele não respondeu. Então eu liguei pra você.

Ok, tranca a porta. Não abre pra ninguém. Vou pra aí assim que puder. Ok?

Omar teve que dirigir por 4 horas até a casa de sua filha.

Enquanto isso, Abdullah estava ligando repetidamente para seu pai. Finalmente, seu pai Seyfettin atendeu o telefone e ficou sabendo de sua esposa. Ele pediu permissão para seu chefe e voltou para casa. Ele pediria seu vizinho para cuidar das crianças enquanto iria até a polícia para perguntar o porque de sua esposa ter sido apreendida. Esse era o plano que ele tinha ensaiado em sua cabeça.

Assim que ele chegou em casa, a polícia imediatamente apareceu na porta e pediu a Seyfettin que entrasse na viatura.

Por que estou sendo preso?

Estamos fazendo o que nos mandaram. Você pode conversar na delegacia.

Ei, e as crianças?

Estamos fazendo o que nos mandaram fazer.

Seyfettin sabia que levaria pelo menos duas semanas para que quaisquer acusações fossem apresentadas contra ele ou sua esposa. Sob a regência do estado de emergência, qualquer um pode ser detido por até 30 dias sem quaisquer acusações. Visitas são limitadas e encontrar um advogado é quase impossível. A única coisa em que Seyfettin pensa não é como ele pode sair da prisão, mas em quem cuidaria das crianças.

Omar chegou na casa várias horas depois de a polícia ter levado ambos os pais de Abdullah. Sua irmã de 6 anos e seu irmão de 8 não entendiam o que estava acontecendo. Nem Abdullah. Mas ele tinha que agir como se soubesse que as coisas estavam sob controle. Enquanto ele consolava sua irmã faminta, o vovô Omar chegou.

Os três correram para abraçar o seu avô, a única pessoa com quem podem contar agora. Omar lutar para limpar suas lágrimas, na esperança de que as crianças não perceberiam que algo estava errado. Ele também teve que fabricar uma estória sobre o que estava acontecendo e quando os pais deles estariam de volta. A primeira tarefa era alimentar as crianças. Foi o início de um drama familiar, em que o avô estava cuidando de crianças enquanto sua filha e genro estavam sentados em uma cela em alguém lugar.

Aquela noite foi a mais longa para Omar, que estava dormindo na mesma cama que as crianças. O nascer do sol dificilmente foi um novo dia para sua família. Foi, contudo, o comecinho de uma provação que muitas, talvez milhares de famílias, estavam passando por todo o país. Famílias despedaçadas, crianças sem supervisão e um futuro incerto. Essas era as pessoas que nem liam jornais mas que agora são acusadas de tentarem derrubar um governo. O governo estava tão determinado em trancafiar suspeitos que até esvaziaram prisões soltando 39.000 condenados para criar espaço para os recém chegados, sendo que nenhum deles foi condenado ainda.

No dia seguinte, a polícia ligou para Omar para informar do destino de sua filha e genro. Contaram a ele que os dois foram levados a Adiyaman, um província vizinha, onde haviam trabalhado anteriormente em uma escola ligada ao movimento Gulen.

Não estava claro quais eram as acusações. Quantos dias iriam ficar sob custódia? Seria fornecido a eles um advogado? Visitas seriam permitidas?

Quinze dias se passaram sem alguma notícia. Ambos os pais estavam sendo mantidos sob custódia da polícia. Essas salas úmidas e escuras são os “melhores” locais para se interrogar suspeitos – da maneira que a polícia quiser – e impedir qualquer um de visitar eles. Uma vez que dão entrada na prisão, é difícil torturar presos através dos guardas da prisão – já que alguns podem não ser leais ao governo.

Depois de 15 dias ininterruptos de interrogatório, os dois pais foram presos no aguardo do julgamento e enviados para uma prisão. Os advogados pedem quase US$ 100.000, sem prometer se seus clientes serão libertos, alertando que poderiam ser expulsos de seus tribunais se pegarem um caso politicamente sensível como esse. E por isso o preço elevado.

Os promotores contaram aos pais no tribunal que trabalharam em uma escola ligada ao movimento Gulen no passado e que eram parte de um grupo terrorista. Eles foram acusados oficialmente com “formação de grupo terrorista” e “dirigir uma organização terrorista”.

Omar tinha começado a se dar conta de que os pais não iriam voltar para casa tão cedo. Depois de semanas cuidando de crianças, Omar pensou que seria melhor se levasse as crianças embora. Ele mudou a mobília e as coisas das crianças para sua casa. Ele teve que matricular as crianças em um novo ano letivo, comprar roupas e livros escolares para elas. Um vovô de 70 anos estava agora compromissado com o cuidado de três órfãos.

A prisão de Seyfettin também atingiu em cheio sua família. Seu pai já estava confinado a uma cama, cuidado pelo irmão mais velho de Seyfettin, Abdulkerim. Ao ouvir a notícia da prisão de Seyfettin, o braço direito de Abdulkerim também ficou paralisado.

O esposo da irmã de Seyfettin estava trabalhando como zelador em uma escola ligada a Gulen. Ele foi detido e solto para esperar o julgamento. Pediram a ele que assinasse um lista na delegacia todo dia conforme a investigação sobre ele decorria. Imagine um sistema judicial que vai atrás de um zelador porque ele trabalhou em uma escola ligada a Gulen.

A casa de Omar também não estava imune à busca da polícia. Quando policiais antiterrorismo invadiram sua casa, Omar pediu a decisão judicial. O delegado disse:

Acho que você não assiste o jornal. A gente está sob o OHAL desde julho. Não precisa de decisão judicial. Só da ordem do governador.

OHAL é uma abreviação turca para o estado de emergência em vigência. Nas palavras de Erdogan, um “presente de Deus” ou “lucro inesperado dos céus”.

Nenhuma pedra foi deixada desvirada na casa de Omar. O próximo alvo era o irmão de Omar, Halit.

Halit era um imã em uma mesquita local. Ele havia sido dispensado de seu trabalho depois da tentativa de golpe. A casa de Halit, que estava vivendo com sua mãe de 90 anos, também foi invadida pela polícia. Eles encontraram um Alcorão traduzido por Ali Unal, um colunista que atualmente está preso e que trabalhava no extinto jornal Zaman. Halit também foi detido sob acusações de ser membro de um grupo terrorista.

Esta é a história de Omar. Avô que deveria aproveitar seu tempo livre com seus netos, mas que agora faz o papel dos pais das três crianças. Pai de uma filha e genro presos. E irmão de um imã preso por causa de um Alcorão.

* Essa história foi escrita pelo repórter Mahir Zeyvalov e publicada originalmente no Turkish Times.

Fonte: www.turkishminute.com

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