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‘Não houve golpe. O golpe começa agora’, diz dissidente turco

‘Não houve golpe. O golpe começa agora’, diz dissidente turco
julho 29
21:08 2016

Por João Paulo Charleaux, Nexo Jornal

Jornalista Kamil Ergin acusa Erdogan de forjar a própria queda para justificar perseguição, prisão e tortura de dissidentes. Membro do movimento opositor Hizmet, ele prevê aplicação da pena de morte e fim da democracia na Turquia

Kamil Ergin nasceu em Afyon, no centro-oeste da Turquia, e se formou em Mármara, na faculdade de Letras. Em 2007, aos 22 anos, emigrou para São Paulo, para dar aula de inglês na escola Belo Futuro, mantida pelo movimento Hizmet, do qual faz parte.

Ergin é uma pessoa “vermelha”. A cor é uma referência ao sistema que ele diz que o governo do presidente Recep Tayyip Erdoğan criou para classificar os cidadãos da Turquia, sendo os apoiadores do governo “verde” e os neutros, “amarelos”. Mais de 20 mil “vermelhos” foram presos nos últimos dias, sendo 187 deles jornalistas como Ergin, que mantém um site em português sobre a política turca e foi correspondente do Zaman, maior jornal da Turquia, hoje assumido pelo governo.

A justificativa para as prisões e a censura é a de combater o Hizmet e os seguidores do fundador do movimento, o turco Fethullah Gülen, que hoje vive em auto-exílio nos EUA. Para o presidente Erdogan, o Hizmet é um “estado paralelo” que trama com os militares para mudar o governo turco, ignorando a vontade dos eleitores que já deram a ele três mandatos de primeiro-ministro e um mandato de presidente, com 52% dos votos, em 2015. Erdogan diz que o Hizmet foi responsável pelo golpe frustrado em 15 de julho.

Ergin, porém, diz que o Hizmet é apenas um movimento que busca a internacionalização, a integração e a modernização do Islã por meio da educação e da ciência. Por isso, o movimento funda escolas e promove o intercâmbio internacional, oferecendo bolsas para estudantes pobres e envolvendo empresários no financiamento de iniciativas culturais.

Ergin conversou com o Nexo sobre qual o ponto de vista dos opositores de Erdogan a respeito do golpe de 15 de julho, e sobre o futuro de um governo acusado hoje de perseguição a opositores e de distanciamento da democracia.

Como o sr. vê o golpe na Turquia?

KAMIL ERGIN O golpe verdadeiro é o que está acontecendo hoje. Há uma ditadura sendo instalada. Nos próximos três meses, durante a vigência do estado de emergência, testemunharemos uma limpeza da oposição e o presidente reunirá todas as forças em suas próprias mãos.

A noite do suposto golpe, 15 de julho, é um mistério. Há mais de 40 questões não respondidas sobre esse episódio. A começar pelo horário: às 20 horas toda a população está nas ruas, nos bares e restaurantes. Se alguém quisesse mesmo derrubar Erdogan, iria ao palácio de governo e na casa dos ministros de madrugada, bloquearia os meios de comunicação, e o país amanheceria com novo governo.

Se não houve golpe, o que houve então?

KAMIL ERGIN Erdogan já sabia que havia um movimento militar e deixou que isso acontecesse, usando homens do Exército infiltrados para que o movimento fosse um fracasso. Num golpe de verdade, os militares teriam se pronunciado no canal de maior audiência, ou teriam bloqueado o sinal do satélite estatal turco, cortando todas as transmissões.

Você está dizendo que foi tudo uma farsa?

KAMIL ERGIN Foi uma farsa. Erdogan sabia e deixou que tudo acontecesse. Ele fez um cálculo: deixou que tudo acontecesse, para executar seu próprio plano no momento seguinte.

Os ministros de Erdogan reconheceram que, antes do golpe, já tinham uma lista de opositores, mas a lei não permitia, então, que eles fizessem as demissões e afastamentos que estão fazendo agora. Afinal, como o governo teria conseguido identificar 80 mil pessoas que colaboraram com o golpe, do dia para noite? Essa lista já existia antes.

Erdogan estava bem mais preparado que os militares. O presidente disse que isso foi um ‘presente de Deus’ que permitiu que ele fizesse uma limpeza. De forma conveniente, ele culpou Fethullah Gülen e afastou 3 mil juízes apenas três horas após o tal golpe.

O sr. reparou que nenhum comunicado emitido pelo Brasil usou a palavra ‘golpe’? Por que?

KAMIL ERGIN Foi uma posição parecida com a dos demais. No início, todos estavam perplexos e chocados. Todos ficaram esperando para ver a posição dos EUA. Os americanos condenaram qualquer tentativa de golpe, deram apoio ao governo eleito e instaram o respeito à justiça. Todos foram mais ou menos nessa linha.

Aqui no Brasil, o que me chamou a atenção foi a reação do ministro do Supremo, Gilmar Mendes. Ele disse que a demissão de 3 mil juízes não era algo normal. Ele fez isso num cenário em que muitas autoridades estavam com medo de dizer qualquer coisa. Depois dele, uns quatro ou cinco países disseram algo parecido.

De forma geral, todos os governos respaldaram Erdogan.

KAMIL ERGIN Ele está desempenhando muito bem esse papel de vítima. E está sendo muito hábil. Logo no dia seguinte [ao golpe, 16 de julho], ele ameaçou vetar o uso pela Otan [aliança militar da qual a Turquia faz parte, juntamente com países da Europa e os EUA] de uma base militar estratégica na Turquia. E criticou os EUA por abrigar Fethullah Gülen, que é apontado como artífice do golpe.

Ao mesmo tempo, ele ameaça a Europa em relação aos imigrantes e refugiados. A Turquia tem as cartas na mão nesse assunto. Ele pode até se aproximar mais da Rússia, numa tentativa de negociar apoio internacional em melhores condições. Ele está jogando com isso.

Como a situação chegou no que é hoje?

KAMIL ERGIN A situação não mudou de uma hora para outra. É um processo que vem desde 2010 [ano em que o partido de Erdogan venceu a eleição e o indicou para um segundo mandato como primeiro-ministro. Nesse período, Erdogan enfraqueceu o papel dos militares e começou a criar leis que aumentavam o número de escolas públicas islâmicas e restringia o consumo de álcool, impulsionando uma agenda mais afim aos interesses religiosos] e em 2013 [quando o presidente reprimiu os maiores protestos em décadas de história turca, na praça Gezi, em Istambul]. A partir daí, ele tomou o caminho da repressão, se dizendo um líder escolhido, que representa 50% dos turcos.

No final de 2013, explodiu uma espécie de Lava Jato turca. A operação ficou conhecida como 17/25. O nome é uma referência a duas datas importantes, que são: o dia 17 de dezembro de 2013, quando começou a operação, e o dia 25 de dezembro, uma semana depois, quando o presidente e seu filho foram chamados para depor. Esse é um esquema maior que o da Lava Jato, pois é um esquema internacional, que inclui operações de lavagem de dinheiro do Irã.

Essa investigação vinha ocorrendo há um ano e meio, mas Erdogan não apenas se negou a depôr na justiça quando foi chamado, como também acusou o Güllen de estar por trás do caso, como se aquilo fosse uma tentativa de golpe. Ele mesmo começou então uma campanha chamada ‘caça às bruxas’, em suas próprias palavras, dizendo que o Güllen havia construído um Estado paralelo. Isso fez sucesso entre seus apoiadores. Ele inverteu a narrativa, fechou a investigação e processou os investigadores, promotores e juízes como traidores e terroristas.

Mas, ao mesmo tempo, ele é um presidente eleito democraticamente e tem apoio da maioria, não tem?

KAMIL ERGIN Na última eleição [2014], ele recebeu 52% dos votos e, hoje, depois da história do golpe, deve ter apoio de 60% ou 70% dos turcos. Ele é popular, é uma figura simbólica. Erdogan entrou na cena política em 2002, ao sair da prisão depois de ter cumprido pena por recitar um poema [Erdogan era membro do extinto partido Refahfoi, e era tido como grande orador. Ele foi acusado de confrontar o governo ao recitar versos do escritor e ativista Ziya Gökalp, enaltecendo o islã diante de um governo secular]. Naquele momento, havia uma crise política e econômica. Ele e um grupo de amigos se separaram do partido e criaram o AKP [Partido Islâmico da Justiça e do Desenvolvimento], com a promessa de acabar com a corrupção, aproximar o país da União Europeia e implementar reformas democráticas e liberais. Erdogan realmente fez isso no primeiro e no segundo mandatos, aglutinando os que haviam sido perseguidos pelo governo secular. O uso de véu era totalmente proibido nas repartições públicas, por exemplo e todos os que se revoltavam contra esse tipo de coisa ficaram do lado dele.

A partir do terceiro mandato [2011-2014], ele começou a apostar cada vez mais na religião como um trunfo e impulsionou meios de comunicação mais favoráveis ao seu governo. Erdogan se apresentou como um líder religioso, defensor dos muçulmanos e deixou de lado o perfil apenas de liberal e de democrata. Ele construiu escolas religiosas e novas mesquitas. Todas as mesquitas são públicas e os xeques e imãs são funcionários públicos, que recebem os sermões das mãos de órgãos do governo. Ele criou programas similares ao Bolsa Família do Brasil, para órfãs, viúvas, estudantes.

O clima econômico era muito favorável para os países emergentes e ele atraiu muito investimento estrangeiro nesse período, construindo estradas, pontes e outras obras. Parecia que a Turquia estava indo para um novo patamar, mas era um discurso populista, muito próximo do discurso [do ex-presidente da Venezuela, Hugo] Chávez.

Obs.: Este artigo foi originalmento publicado no portal Nexo Jornal

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