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Projeto de poder de Erdogan desestabiliza Turquia diz Lourival Sant’Anna

Projeto de poder de Erdogan desestabiliza Turquia diz Lourival Sant’Anna
março 08
17:42 2016

Escrito por Lourival Sant’Anna, após sua viagem à Turquia a convite do CCBT – 15 de setembro de 2015

Cenário depende de posição dos militares e do êxito da carta nacionalista nas eleições de novembro

Passei a última semana na Turquia, participando de debates sobre a situação do país com cientistas políticos, jornalistas, economistas e historiadores em Istambul, Esmirna e Ancara. Ficou claro para mim que o projeto de poder do presidente Recep Tayyip Erdogan, e as suas estratégias para executá-lo, explicam em grande medida os atuais conflitos com os curdos, a forte presença do Estado Islâmico na fronteira com a Síria e o inédito alinhamento entre a cúpula militar e o seu governo islâmico moderado.

O Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), de Erdogan, chegou ao poder em 2002, depois de ter enfrentado, com outros nomes e formações, banimentos, prisões e perseguições por parte do establishment militar. Quando fui à Turquia em 2006, para cobrir a visita do papa Bento 16, o governo islâmico moderado representava um modelo de “democracia islâmica” para muitas pessoas dentro e fora do mundo muçulmano, e o país acalentava o sonho de ingressar na União Europeia.

Erdogan foi reeleito em 2007, com 47% dos votos – em contraste com os 34% de 2002, quando ficou com dois terços das cadeiras por causa de uma cláusula de barreira para partidos com menos de 10% dos votos. A reeleição se deu na esteira de um vigoroso crescimento econômico, de 8,4% em 2005 e 6,9% em 2006. As coisas tomaram outro rumo com a eclosão da Primavera Árabe, em 2011, ano em que seu partido obteve 50% dos votos. Erdogan passou a fazer périplos pelo mundo árabe, e, em seus discursos, mesmo quando estava na Turquia, começou a dirigir-se à Umma, a comunidade islâmica supranacional.

Rompeu com o ditador da Síria, Bashar al-Assad, do qual era antes muito próximo, e passou a apoiar a oposição síria – tanto secular quanto radical islâmica. Vídeos flagraram caminhões levando armamentos para grupos combatentes islâmicos, que usufruíram de trânsito fácil na fronteira. Só recentemente, por causa das pressões da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), da qual a Turquia é membro, e que está combatendo o Estado Islâmico, foi que o governo turco cortou a ajuda ostensiva.

O então primeiro-ministro também deu início a projetos de palácios, mesquitas e monumentos destinados a associá-lo à grandeza do Império Otomano, dissolvido depois da 1a. Guerra Mundial. Simultaneamente, seu partido, com maioria absoluta no Parlamento, aprovava propostas de coibir o consumo de bebidas alcoólicas e de permitir o uso do véu por mulheres em escolas e repartições públicas.

Era como se Erdogan quisesse apagar uma história de oito décadas de consolidação de um regime militantemente secularista, implantado por Kemal Ataturk, o pai da Turquia moderna, com base na interpretação de que a influência da religião sobre o Estado havia levado os otomanos ao atraso e à derrocada militar. Concomitantemente, seu governo foi alvo de investigações de esquemas de corrupção, que levaram à queda de quatro de seus ministros e envolveram também Erdogan e seus auxiliares diretos. Foi nesse clima que, em 2013, manifestantes ocuparam a Praça Taksim, em Istambul. O gatilho dos protestos foi um projeto de construção de um shopping center no Parque Gezi, que recriava um antigo quartel otomano – agora com fins comerciais. Mas a pauta se ampliou para o crescente autoritarismo de Erdogan. As manifestações acabaram duramente reprimidas, embora o governo tenha recuado no projeto do shopping/quartel otomano.

Depois de mudar a composição do Conselho Superior de Juízes e Procuradores, que passou a ser controlado pelo Ministério da Justiça, Erdogan obteve a prisão dos magistrados que o investigavam. Desde então, essa manobra tem-se repetido várias vezes: quando um magistrado se engaja em algum processo que desagrada o governante, acaba punido. Lançando mão do seu controle sobre a Justiça, Erdogan mandou soltar os militares que haviam sido presos sob acusação de tramar um golpe contra ele em 2003. Com esse gesto, somado a expurgos de oficiais nos quais não confiava – 300 dos quais foram presos -, conquistou o apoio da cúpula das Forças Armadas, reeditando, assim, o sistema de “tutela” militar que vigorava antes de sua ascensão ao poder em 2002.

A perda de apoio da classe média secular coincidiu com a desaceleração da economia turca – que cresceu 2,1% em 2012, 4,2% em 2013 e 2,9% em 2014, prejudicada pelos conflitos na Síria e no Iraque, mercados lucrativos para seus produtos. Diante de seu enfraquecimento, Erdogan buscou aproximar-se da minoria curda (15% a 20% da população), que luta por seus direitos e por autonomia no sudeste do país. Anunciou que a partir de março de 2013 seu serviço secreto estava negociando com o líder guerrilheiro curdo Abdullah Ocalan, preso desde 1999, condenado a prisão perpétua. Prometeu resolver o “problema curdo”. Eleito presidente em 2014, seu plano era converter o regime parlamentarista em presidencialista, de maneira a concentrar poderes em suas mãos. Para isso, desejava o apoio do Partido Democrático Popular (HDP), que reúne curdos moderados e, cada vez mais, turcos antinacionalistas.

Entretanto, na corrida para as eleições parlamentares de junho, o HDP deixou claro que não apoiaria o presidencialismo. Atraindo o voto de eleitores da etnia turca, que rejeitam tanto os islâmicos de Erdogan quanto os outros partidos nacionalistas que lhe fazem oposição, o HDP realizou a proeza de obter 80 cadeiras no Parlamento de 550. O AKP de Erdogan, de sua parte, elegeu 258 deputados, portanto 18 a menos que o necessário para obter a maioria absoluta. Erdogan viu seu plano presidencialista fracassar e, em vez de convidar a oposição para formar um governo de coalizão, como indica a prática parlamentarista – embora não o obriguem as leis turcas -, convocou novas eleições para novembro.

Seu objetivo é angariar maioria absoluta nas novas eleições. Como a sua base eleitoral islâmica moderada se provou insuficiente para isso, Erdogan decidiu usar a carta nacionalista – de grande apelo na Turquia. Mandou prender cerca de mil militantes curdos – mais ou menos os mesmos que havia mandado soltar no processo de distensão com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), a guerrilha curda. Em contradição com sua promessa anterior de “resolver o problema curdo”, Erdogan declarou que “não existe problema curdo”. Um cessar-fogo de dois anos com a guerrilha chegou ao fim.

Sua estratégia para enfraquecer os separatistas curdos incluiu o apoio ao Estado Islâmico (EI). Mais do que combater as forças leais a Assad, o EI dedicou-se principalmente à disputa com os guerrilheiros curdos pelo controle da cidade de Kobane e arredores.

Contra a vontade do HDP, que condena publicamente a luta armada, o PKK reagiu procurando mostrar seu poder de fogo. Dois ataques na semana passada mataram 16 soldados e 14 policiais. Essas ações causaram comoção na Turquia. Comitês do HDP foram atacados e ativistas armados de paus e pedras se reuniram na frente dos jornais Hurriyet, nacionalista, e Zaman, pertencente ao Hizmet, um movimento islâmico moderado crítico do governo. Um deputado do AKP incitou os simpatizantes do governo.

A liberdade de imprensa tem sido restringida. Uma lei converteu em crime “insultos” ao governo, punidos com prisão, e as críticas ao presidente são nela enquadradas. Vários jornalistas estão presos, incluindo Hidayet Karaca, presidente da rede de TV Samanyolu Grup, ligada ao Hizmet. Dois juízes que mandaram soltar Karaca, preso há nove meses, também foram para a cadeia. Mais de 70 mil websites foram banidos – parte deles pornográficos, outra parte, críticos ao governo. Contas do Twitter que divulgavam gravações indicando seu envolvimento com desvios de dinheiro foram bloqueadas. Em contrapartida, segundo jornalistas críticos ao governo, há 15 jornais que apoiam Erdogan, que “ninguém sabe de quem é”, e 70% da audiência está nas mãos de emissoras de TV simpáticas ao governo, sejam públicas ou privadas.

As duas questões determinantes para o êxito da estratégia de poder de Erdogan e a estabilidade da Turquia são: 1) Os militares podem tentar um golpe, como ocorre tradicionalmente uma vez a cada década no país? 2) O AKP conseguirá aglutinar os votos dos nacionalistas e obter maioria absoluta no Parlamento, nas eleições de novembro?

Ao longo da semana passada, procurei apurar os humores dos militares, nas conversas com os analistas, e o resumo da situação é o seguinte: por enquanto, não há sinais de movimentação entre os militares, que pudesse levar a uma intervenção. Mas um eventual agravamento do conflito com os curdos e/ou da situação econômica, bem como uma nova onda de manifestações poderiam mudar o seu humor.

No campo nacionalista, o AKP concorre com duas forças: o Partido Popular Republicano (CHP), fundado por Ataturk, que se moveu para a social-democracia, e obteve 26% dos votos nas eleições parlamentares de junho; e o Partido do Movimento Nacionalista (MHP), de extrema direita, que teve 17% dos votos. Na semana passada, assisti a uma manifestação de nacionalistas em Esmirna, em protesto contra os ataques da guerrilha curda aos soldados e policiais. Embora essas manifestações vão no caminho desejado por Erdogan, de estimular a hostilidade contra os curdos, não é necessário que os eleitores nacionalistas mordam a isca do presidente e troquem os candidatos de seus partidos pelos do AKP. Mas o quadro ao menos pode alimentar a fragmentação da oposição: antes mesmo da onda de ataques do PKK, o MHP já se recusava a negociar com os curdos do HDP. A oposição sequer conseguiu eleger um presidente para o Parlamento. Essa fragmentação inibe o surgimento de um rival à altura de Erdogan.

Por outro lado, a violência do PKK é um problema para o HDP, que vinha atraindo votos tanto da maioria turca quanto da minoria alevita, uma seita próxima do xiismo, vítima de discriminação por parte de Erdogan. Nesse sentido, o partido curdo vinha se tornando uma força pluralista e ocupando o espaço antes pertencente ao AKP. Seu crescimento depende de sua capacidade de se distanciar do PKK. O partido vem se esforçando nesse sentido, ao condenar a violência da guerrilha curda. Mas pairam suspeitas, entre muitos turcos, de uma aliança secreta persistente entre a guerrilha e o partido.
Em um ambiente de intensa manipulação da informação, o futuro se torna ainda mais imprevisível. Uma coisa parece certa: a instabilidade na Turquia tende a aumentar.

Fonte: www.lourivalsantanna.com

Fonte: www.brasilturquia.com.br

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